O Megafone de..
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Que escuridão esta, Senhor
por Rui Lage



 
 
Que escuridão esta, Senhor
   
 
Aboios a toque de sampler
e flauta midi – ó vós omnes
nós daqui e vós daí.
Megafone levado à boca
de aldeias perdidas,
a naifa guardada no bolso
para o que der e vier
emboscar o coração,
inquilino sinuoso
acompanhado à guitarra.

Auto da criação do mundo
nos baldios da Parede
ou no país sentado ao sol interior,
com mulheres de negro,
cantadeiras e tamborileiros
onde alguns, poucos,
de gravador a tiracolo
iam buscar o que restava
de maias e alvoradas,
canções de berço, mondas,
sementeiras, segadas
e olhinhos verdes
em romagem de puro amor.

Tradição, cara senhora,
decerto me desculpais
mas já não tinha estômago
para isto, o meu talento
era de anjo marinheiro,
e as cordas do meu baixo
lâminas de arado.

Mas agora quem fica para escutar
esse país sitiado?

E quem fica para tocá-lo?


 
   
  Rui Lage

Rui Lage nasceu no Porto em 1975, filho de transmontanos e neto de agricultores. Publicou nas Edições Quasi, entre 2002 e 2008, os livros de poesia “Antigo e Primeiro”, “Berçário”, “Revólver” e “Corvo”. É também autor de teatro, ensaio e literatura para a infância. Traduziu obras de Paul Auster, Pablo Neruda e Samuel Beckett, entre outros. Co-fundou a revista de literatura, música e artes visuais “aguasfurtadas”, e pertence à direcção da Fundação Eugénio de Andrade. É responsável, juntamente com Jorge Reis-Sá, pela organização, selecção e introdução da obra “Poemas Portugueses: Antologia da Poesia Portuguesa do séc. XIII ao séc. XXI” (no prelo). Encontra-se a ultimar a sua tese de doutoramento na FLUP, intitulada “Perda, Luto e Desengano”.
   
  http://valacomum.blog.com//
   


O Meu Primo
por Ricardo Alexandre



 
 
O meu primo só faz uma coisa de cada vez
   
  Eu tinha chegado não havia dois dias àquela terra onde o frio é mais frio mas o vinho é mais quente. Fica perto da grande cidade, mas estranhamente tão longe de tudo, como ficam todas as terras cujo nome não associamos à saída de qualquer lanço de auto-estrada. Recebeste-me com um abraço como só tu davas, nem muito forte nem muito fraco, mas tremendamente sentido e com uma envolvencia de gestos que eram teus, não podiam ser de outro nem de mais ninguém.

Recebeste-me com uma frase da qual ainda nos ririamos mais tarde, como nos ríamos tanto de tanta coisa que dava vontade de rir e até de chorar:

- Benvindo ao CRAT, Centro de Recuperação Afectiva do Turvel!

Bem precisava de uma instituição assim, depois da francesa que conhecera um ano antes me ter deixado na merda no estranho auge de um amor secreto num Verão prolongado até ao final do ano, quando finalmente decidiu reatar com o primeiro homem que conhecera, que a queria em casa, afastada da profissão, só a pintar. Coisa francesa, portanto. Valerie decidira ceder às pressões da mãe. Coitada, cardíaca se bem que manipuladora até à exaustão. E para mais, o Pierre ainda era visita de casa e até sócio do pai dela. Grande estatuto para um ex. Rapidamente deixou de o ser. Ex. Passou a noivo. E eu lá levei o coice. Sem pestanejar. Também ia fazer o quê? Matar o estrangeiro? Não, nem pensar! Eu creio na revolução e amo este país mas nunca me deu para matar ninguém!

Que tenha um andar novo, foi o que desejei na altura. Mas nunca uma tragédia do tipo Olival à Graça...

Mas assim te apareci. Meio esfrangalhado. Com vontade de te contar tudo em pormenor. Estavas tu em pause na tua relação de vida, que nunca deixou de ser, fazendo agora o rewind, um play admirável e um rec invejado. O par mais perfeito que já conheci. Deliciosamente incorporando defeitos e virtudes mútuos.

Pois, foi no Turvel. Deste-me aí a ouvir, pela primeira vez, canções que nem sequer eram subterrâneas. Sabia que estavas há muito a criar algo diferente, mas nunca imaginei que soasse assim tão bem. Gostei à primeira. E gostei ainda mais à segunda, à terceira. Entranha-se sem se ter estranhado. Conversámos imenso sobre as nossas vidas, talvez mais sobre a minha atribulada existência sentimental, sobre música também.

Adormecemos tarde e tarde acordámos. Depois de um almoço meio improvisado - mesmo em tua casa, tinhas sempre o cuidado de perguntar se eu alinhava nisto ou naquilo para almoçar - fomos ao café, fumaste o cigarro e fomos ao encontro da oficina de um primo teu que eu não conhecia mas que, pelos vistos era a pessoa ideal, ou talvez a única disponível naquela terra de estrada para Algures, para resolver o problema no teu carro verde antigo, deliciosamente tipo banheira. Conversaste aí tipo meia hora com o tal primo que me perdoe mas cujo nome não recordo e saímos. Sem perguntares pelo que podia ele fazer pelo teu carro, muito menos deixaste as chaves com ele. Estranhei e perguntei. Respondeste de imediato:

- Ricky, não viste que o meu primo estava a arranjar um camião? Achas que ele se ia ocupar de mais de uma coisa ao mesmo tempo? O meu primo só faz uma coisa de cada vez.

Por vezes penso que também tu eras assim. Uma coisa de cada vez. Agora isto, depois aquilo. Não misturar. Talvez os génios como tu sejam assim: concentram-se em apenas uma coisa, empenham-se e colocam aí todo o seu talento e depois sai a obra-de-arte. Diferente, inovadora, a rasgar horizonte, como tu fizeste em disco dezena e meia de vezes, em palco várias centenas. Com tempo. Até a maré encher.

É isto. Como tu começavas tantas vezes cada frase para explicares aquilo que te ia na alma, nessa grande alma sem inclinação para o mal, dizias assim. "Basicamente..."

Imagino que hoje ainda vivo na tua casa da Feliciano Castilho. Esta noite passo eu pela churrasqueira pequena junto à estação e levo o frango e meio para nos lambuzarmos, mais o arroz e as cervejas.

Até já, Amigo!

   
   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ricardo Alexandre

Ricardo Alexandre Encarnação Sousa

Nascido a 26 de Novembro de 1970, na cidade do Porto. Jornalista profissional desde 1989. Carteira profissional nº 2004.

Director Adjunto de Informação da RDP desde Novembro de 2005, quadro superior do grupo RTP, SGPS. Apresenta na Antena1 o programa semanal de informação Visão Global, sucedendo ao programa Mais Europa.  Editor de Sociedade/Coordenador da RTP entre Agosto de 2001, exercendo funções na RTP-Porto, e Dezembro de 2004.  Jornalista da RDP-Antena 1 de Março de 1993 a Julho 2001, tendo por diversas vezes assumido o cargo de Chefe de Redacção / Editor.   Já publicou reportagens e crónicas nos jornais Público, Jornal de Notícias, Record, Notícias Magazine, Semanário, DNA e SETE.   É autor dos livros Irão: o país nuclear (Ambar, 2006, com prefácio de Jorge Sampaio), Por Uma Vida Normal – Guerra e Paz na Jugoslávia, (Campo das Letras, 2002) e Palestina, Viver na Intifada (Sete Caminhos, 2004).Prémio Reportagem Rádio do Clube Português de Imprensa, 1999, com o trabalho «Jugoslávia, Cicatrizes para o Futuro»Prémio Repórter Rádio da Casa da Imprensa / Prémio Maria Leonor, «por um conjunto de trabalhos», 2005. FACTOS RECENTES Em Setembro de 2008 foi indicado pela empresa RTP para desenvolver acção de formação profissional na Rádio Moçambique (Beira). Em Julho de 2007, foi enviado especial da Antena1 e RTP à Sérvia, para acompanhamento da situação de instabilidade gerada pelo atraso na definição do estatuto da província do Kosovo, tendo realizado posteriormente uma Grande Reportagem para a rádio e outra para a televisão. Em Setembro de 2006 foi enviado especial da Antena1 a Nova Iorque para realizar e apresentar emissões especiais cobre o quinto aniversário dos atentados de 11 de Setembro. Em Maio de 2006 foi enviado especial da Antena1 ao Irão, quando estava ainda no início o mais recente confronto político e diplomático por causa do programa energético nuclear iraniano. Em Setembro de 2005, foi enviado especial à Croácia, Bósnia Herzegovina e Sérvia, para acompanhamento da situação política na conturbada região dos Balcãs. Em Junho de 2005 foi indicado pela empresa RTP para desenvolver acção de formação profissional na Rádio Moçambique (Maputo). Em Maio de 2005 foi enviado especial da RDP-Antena 1 a Inglaterra para a cobertura das eleições gerais no Reino Unido.  Em 2004 foi autor de uma Grande Reportagem sobre o turismo em São Tomé e Príncipe para a RTPN. Em Junho de 2003 foi enviado da RTP ao País Basco espanhol e à Líbia.  Em 2001 foi enviado especial da RTP ao Afeganistão, tendo sido o primeiro jornalista da televisão portuguesa a chegar a Cabul após a queda do regime talibã.  Ainda em 2001, antes de se transferir para a televisão pública, fez para a RDP-Antena1 a cobertura da campanha presidencial de Jorge Sampaio, foi enviado especial da RDP à Jugoslávia (a propósito das eleições na república do Montenegro e da detenção de Slobodan Milosevic) e ao Médio Oriente (Israel e territórios árabes ocupados).
   
   
   


O Fogo e as Cinzas
por António Pires



 
 
O Fogo e as cinzas
   
 
Há muitos milhares de anos, algures na Europa, uma tribo habitava uma aldeia cujo centro era completamente ocupado por uma fogueira enorme, tão grande que as suas chamas se avistavam a muitos quilómetros de distância. Era à sua volta que os homens e mulheres da tribo se reuniam para conversar, discutir, cantar, contar anedotas e mentiras, namorar, exagerar façanhas de guerra ou de caça, transmitir as histórias e as lendas do seu povo, mexericar, dançar e, acima de tudo, para se aquecerem. Mas, apesar daquela fogueira os aquecer, os homens e mulheres da tribo não a usavam para mais nada. Continuavam a comer a carne, o peixe e o trigo crus, não usavam o fogo para fazer outras fogueiras ou tochas com as quais poderiam iluminar-se noutros locais ou afastar os animais selvagens. Não o utilizavam para tornar as pontas das setas mais fortes ou para temperar o ferro. Não o usavam sequer para cozer objectos de barro ou furar mais facilmente os ossos e deles fazer flautas e adornos.

Muitos dos homens e mulheres da tribo até sabiam, ou desconfiavam, que poderia ser assim, mas não se atreviam a fazê-lo por uma razão simples: aquela fogueira era sagrada. Acreditava-se que a fogueira estivera lá desde sempre e que teria sido criada por um deus desconhecido, que num dia longínquo teria soprado o fogo pela sua boca e ali tinha feito nascer a maior e mais bela fogueira de todo o mundo que eles conheciam. Na realidade, um mundo que cobria três ou quatro rios, um lago, uma cordilheira de montanhas e alguns vales vizinhos. Logo, ninguém se aproximava da fogueira, antes se detendo a alguns metros, tanto por temor como por reverência e respeito. Os homens e as mulheres da tribo ofereciam à fogueira preces e alguns sacrifícios, imploravam-lhe para que nunca deixasse de os aquecer, para que se mantivesse para sempre acesa, que os protegesse e nunca os atacasse com as suas labaredas. Como em muitas outras manifestações religiosas, assim como ninguém sabia quem tinha acendido a fogueira, também ninguém sabia como ela se mantinha acesa, forte, viva, enorme. Era um mistério, e assim permaneceria para sempre.

Até que, certo dia, alguns dos homens e das mulheres mais velhos da tribo repararam numa coisa nunca antes vista: a fogueira tinha diminuído de tamanho. Não era assim uma coisa muito evidente. Mas também todos os outros, quando alertados pelos mais velhos, perceberam que a fogueira tinha perdido parte do seu fulgor, da sua força, do seu calor. Estranharam, culparam-se - será que o deus que se esconde na fogueira estaria zangado com eles? -, ficaram preocupados e temerosos pelo seu destino. Mas nada fizeram: ninguém se atrevia a mexer no fogo sagrado; e nem sequer tentaram alimentá-lo. É certo que, por essa altura, aumentaram as orações e os sacrifícios rituais perto da fogueira. Javalis, lebres, ouriços, esquilos, lobos e até um enorme urso foram mortos para aplacar a eventual ira da fogueira e pedir aos deuses para que ela continuasse acesa e para que os aquecesse a eles e às gerações futuras. Mas isso não resultou: ao longo dos dias, das semanas, dos meses seguintes, a fogueira começou a mirrar, a desaparecer, a ser mais um monte de brasas e de cinza do que propriamente um madeiro ou uma fogueirita média. Os anciãos da tribo, os chefes e os feiticeiros começaram então a culpar-se uns aos outros e a culpar terceiros - as tribos inimigas, as mulheres, os jovens, os deuses e outras forças ocultas - pela calamidade que se tinha abatido sobre o seu povo. E a fogueira lá continuava, desaparecendo mais e mais e mais a cada dia que passava. Até que, numa noite escura - uma noite que era ainda mais escura porque a fogueira já não brilhava como tinha brilhado antes -, alguns membros da tribo, alguns mais velhos, outros mais novos, homens e mulheres, rapazes e raparigas, tomaram uma decisão: iriam roubar algumas brasas da velha fogueira e com elas iriam atear uma nova fogueira. E assim fizeram.

Nessa mesma noite, com as brasas que tinham roubado, o grupo rebelde acendeu uma nova fogueira, perto de onde estava a antiga. Era pequena, mas servia perfeitamente: aquecia-os e, para além disso, logo perceberam que com este fogo podiam cozinhar a carne e, de uns poucos grãos de trigo, fizeram o primeiro pão. E muitas outras coisas viriam a perceber no futuro. Mas, antes de esse futuro acontecer, nessa mesma manhã, muitos outros membros da tribo descobriram o que o grupo tinha feito e acusou-o de heresia pelo que fizeram e de blasfémia pelo que, contestando, tinham dito em sua defesa. E foram expulsos da aldeia. Na nova aldeia que fundaram, a alguns quilómetros da original, acenderam uma nova fogueira que, não sendo tão grande quanto a primeira, servia perfeitamente. Descobriram que, adicionando alcatrão ou outros materiais gordos, a combustão da madeira era mais eficaz; descobriram que, se se lhe juntassem alfazema, incenso ou rosmaninho, a fogueira adquiria outros cheiros e cores... E, apesar de já não ser uma fogueira sagrada - sabiam que tinham sido eles a ateá-la com as próprias mãos -, todos eles tinham por ela um respeito enorme e, apesar de já haver outras fogueiras em todas as casas e de inúmeras tochas iluminarem os caminhos ou ajudarem na caça, ainda era junto dessa fogueira comunitária que eles se juntavam para as festas e os folguedos.

Na outra aldeia, a original, os que por lá tinham ficado assistiam à morte lenta, mas irreversível, da fogueira primordial. E que um dia acabou por se apagar definitivamente. Durante muitos anos, alguns dos homens e das mulheres da aldeia ainda lá se deslocavam, reverentes, para contemplar as cinzas agora frias e recordar como aquela fogueira tinha sido bela. Outros esqueceram-se dela e habituaram-se a viver sem o seu calor. E outros foram pedir umas brasas à aldeia vizinha.

(conto inspirado no Mito de Prometeu e por uma frase do compositor Gustav Mahler - «A tradição é a transmissão do fogo e não a veneração das cinzas»; dedicado à memória de João Aguardela, transmissor do fogo que arde na música tradicional)

António Pires

 
   
  António Pires

António Pires, DJ e jornalista de música, trabalhou no jornal BLITZ durante 20 anos, do qual foi Chefe de Redacção durante 12 anos. Publicou também textos no Se7e, Expresso, A Capital, Revista de Cinema, Face, Mini International e Autores. Realizou e colaborou em programas de rádio na RUT e na NRJ. Frequentou durante três anos o Curso de História da Faculdade de Letras de Lisboa e completou o Curso de Cinema da Escola Superior de Teatro e Cinema. Dá aulas de História da Indústria Discográfica na Restart, onde também leccionou História do Espectáculo no Séc.XX. É jornalista free-lancer, responsável pelo blog Raízes e Antenas. Colabora com a revista Time Out Lisboa e o jornal «i». É o autor do livro «As Lendas do Quarteto 1111» e tem textos publicados noutros livros: «Rádio Macau: Livro Pirata» e «Contra Danças Não Há Argumentos». Como DJ actuou em festivais como o FMM de Sines, MED de Loulé, Etnias, Mundo Mix, Mundo Dakar, Eco Fest, DocLisboa, Granitos Folk, FIDO e Voz de Mulher, assim como em locais como a Expo de Saragoça, Contagiarte (Porto), CaféVinil (Sintra), MusicBox, Regueirão dos Anjos, Santiago Alquimista, Love Supreme, Onda Jazz, Museu do Fado e Chapitô (Lisboa).
   
  http://raizeseantenas.blogspot.com/
   


Foi numa Quarta
por Manuel Halpern



 
  Foi Numa Quarta
   
  O dia em que me tornei camponês

Para João Aguardela

Foi numa quarta-feira que me decidi tornar camponês. Os carros estavam empoleirados nas árvores e o homem da rádio não parava de dar notícias de crimes contra a humanidade dos antípodas do nosso mundo, onde não havia tráfico, mas havia crimes.

Sim, foi numa quarta-feira. Cheguei a casa e doía-me a sola do pé de tanto pisar a embraiagem no pára-arranca-pára dos nossos dias. A gravata revoltara-se contra o pescoço num chupão vermelho e eu dei por mim a hidratar a pele com um daqueles cremes com que se besuntam os rabos dos bebés.

Nessa quarta-feira espreitei pela janela na esperança de ver o céu, mas embora estivesse azul, ora a clarabóia da marquise ora o prédio inamovível que jazia à minha frente, não me deixavam saber. Apenas vislumbrei uma vizinha que debruçava o decote húmido sobre a planta que regava. E foi então que pensei, quem me dera ser camponês.

Era quarta-feira. Desci à loja e comprei uma enxada topo de gama, que prontamente assentei no ombro, como os camponeses fazem. Depois troquei o meu carro por uma carripana constipada, que tossia sem parar mal se ligava o motor, e tremia tanto que eu tinha de segurar o volante com as duas mãos como quem doma um cavalo bravo.

O campo começava logo ali, onde terminava a cidade, e prolongava-se até ao começo da próxima. Um homem de fartas suíças disse-me que para chegar ao campo tinha que virar na segunda a esquerda, depois da bomba gasolina.

Quando cheguei ao campo instalei-me na casa de campo. Pousei a enxada no alpendre, olhei para o céu exageradamente azul e pensei, como é boa a vida no campo.

Naquele dia decidi, amanhã cavo. Pousei discretamente a enxada na casa das ferramentas e fui até ao café da aldeia, onde os camponeses têm conversas campestres de final de tarde. Na carripana ia a ouvir as recolhas de música tradicional portuguesa de Michel Giacometti e José Alberto Sardinha. Como o carro tossia cada vez mais alto, eu aumentava o volume até ensurdecer os pássaros.

No café da aldeia havia música todas as quartas-feiras. Então eu tirei da carripana a viola braguesa, disposto a impressionar as hostes com um inesperado dedilhado urbano. Mas por lá estava tudo em silêncio.

Sentei-me ao balcão e pedi um bagaço, enquanto observava a mais bela camponesa, branca e roliça, com braços anchos e peitos folgados, como as camponesas se querem. O que bebes?, perguntei-lhe numa timidez provinciana. Um Bloody Mary, disse-me, pouco sumo e muito gelo, para não atrair mosquitos.

Ao segundo gole vermelho, perguntou-me, remexendo a palhinha, O que fazes hoje à noite?

Olho a lua, respondi.

E o que é que a lua tem de especial? A lua é sempre a mesma, está ali há séculos, ora cresce ora diminui, ora é tapada pelas nuvens ora fica à mostra. A lua é sempre a mesma coisa, não há nada para ver.

Senti-me incomodado com a minha excentricidade urbana. Nunca me tinha ocorrido que a lua se pudesse tornar em algo tão desprovido de sol.

Porque não vens antes ao Ex-Libris?

O Ex-Libris era a discoteca do campo. E eu substituí a Lua pelo Ex-Libris. Senti-me envergonhado por levar a minha carripana ferrugenta, enquanto os outros usavam Mercedes, Rovers, Jeeps.

A camponesa chegou de Smart. Usava óculos escuros mosca, calças largas, uma t-shirt apertada e, para ser franco, já não me parecia tão roliça quanto isso. Levou-me pela mão numa floresta de beats e luzes, na qual eu certamente me perderia se não acompanhado. Depois ela entrou no cubículo do DJ e rodou os pratos do gira-discos como quem está na safra. O público, devidamente drogado, mostrava o seu contentamento, com longos uivos e braços bailantes no ar. Passava um tecno-subversivo, com mais beats do que a pulsação de um hiperactivo.

Ao princípio julguei aquele som insuportável, mas quando a camponesa me forneceu uma ampola artesanal para a boa disposição, entrei no ritmo, e apercebi-me da beleza das semifusas monocromáticas.

Acabámos a noite em casa dela. Recostados num sofá de poliéster. Eu com a minha viola braguesa e ela com uma caixa de ritmos da Korg, capaz de transformar o canto dos pássaros no som de uma locomotiva nervosa. Vamos gravar uma demo, propôs-me. Eu hesitei. Mas quando voltei para a carripana, as recolhas do Giacometti sobre a batida do carro constipado pareceram-me ainda mais magníficas.

Peguei na enxada e fiz-me à cidade, sorrindo sem dar conta, enquanto guiava. Cantarolava as músicas que ouvia e ia tomando notas com a mente. Lá em cima, a lua da cidade estava encoberta por uma mancha de smog que lhe dava uma tonalidade púrpura, que nem a urze da planície.

Manuel Halpern
Março de 2009

   
   
  Manuel Halpern

Jornalista e crítico do Jornal de Letras, Artes e Ideias, Manuel Halpern escreve preferencialmente sobre música e cinema, além de manter, desde há dez anos, a coluna fixa O Homem do Leme. Popómano, cinéfilo, bloguer, ávido coleccionador de CD e DVD, e autor de booklets, nasceu em Lisboa no ano da Revolução de Abril. Tem duas filhas, duas peças de Teatro (O Segredo do Teu Corpo e Palco – Quimera, 2006), um ensaio sobre fado (O Futuro da Saudade – O Novo Fado e os Novos Fadistas, Dom Quixote, 2004). Licenciado em Comunicação Social, pela Universidade Católica, com pós-graduação em Crítica de Cinema e Música Pop, na Faculdade Ramon Lull de Barcelona, colaborou, entre outros, com a Visão, Público, Blitz, Antena 2, Diário de Notícias e Corriere della Sera. Nas horas vagas é DJ, integrando a dupla de som e imagem Ouvido Visual. Fora de Mim é a sua primeira ficção.
   
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